sexta-feira, 11 de abril de 2014

"Noé": Deus desistiu da Humanidade?

 
O filme épico Noé é uma tentativa moderna de releitura das páginas bíblicas dedicadas ao tema do dilúvio. Assisti ao filme, mas devo confessar que não gostei, e não por piedade religiosa, mas porque as conclusões antropológicas e teológicas que se podem retirar dele são nefastas. Não posso negar, entretanto, que os atores são nomes de peso, como Russel Crowe, Jennifer Connely e Anthony Hopkins; além do diretor que tem filmes bons em sua ficha técnica, como As Aventuras de Pi e Cisne Negro; o cineasta novaiorquino, Darren Aronofsky. Mas o sucesso com aqueles filmes não parece se repetir neste, porque a história faz lembrar muita coisa, menos as poucas palavras bíblicas sobre o dilúvio. Hora eu me via diante de um documentário da Discovery Chanel, ou numa cena perdida de “O Senhor dos Anéis”… Mas a história da bíblia já é conhecida e seria uma ingenuidade pensar que seriam gastos 125 milhões de dólares para recontar aquela história, sem nenhum recurso à criatividade, sem nenhum contorno diferente que fizesse surpreender o expectador, que já vai para a sala sabendo o roteiro. Ingenuidade pior seria pensar que uma produção americana iria descuidar da imagem, da performance, que sobrepujam os roteiros de muitos filmes, embora hoje se assista a uma tendência de recuperar a importância do roteiro, mesmo em meio à imagem perfeita. Por fim, eu sabia que o filme era uma releitura, uma produção baseada em. Mas tal inovação incomodou… Queria falar desse incômodo…
1. O Filme Noé é incompatível ao Texto Bíblico.
 
A família de Noé será o último rastro humano. Pode haver um Deus que não queira a humanidade? Que não acredite nela?
Enquanto nas Escrituras, a focalização interna – é como chamamos na teologia narrativa o recurso de descrever as emoções ou a psique da personagem – é igual a zero, o filme faz aparecer todas as emoções de Noé que de querer fazer a vontade de Deus, torna-se um lunático, um verdadeiro fundamentalista. Um homem de fé tornou-se um verdadeiro fanático, seguindo à risca a sua interpretação de um sonho, segundo o qual ele deveria construir uma arca, para salvar os animais e sua família, que deveria em seguida morrer para deixar no novo paraíso somente os animais, os únicos não corrompidos pelo pecado. Por isso, Noé não salva a menina pela qual, um de seus filhos, Cam, se apaixona, depois de implorar por uma esposa ao pai; por isso Noé quer matar as próprias netinhas, para que elas não se convertam na esperança de repovoar a Terra pós-dilúvio. Deus não fala sequer uma vez com seu servo, mas silencia-se sempre deixando-o às suas próprias escolhas e conclusões. Pode parecer, aparentemente, que Deus quer deixar o homem à sua própria responsabilidade, como alguns querem forçar. Antes fosse, mas somos obrigados a ouvir Noé dizer a seu filho Cam que ele não deve procurar o seu desejo, mas o desejo de Deus, repetindo uma imagem tirânica da divindade, que traça um caminho que deve ser cumprido a despeito de qualquer um.
Na bíblia a coisa é diferente: todos os filhos de Noé entram na arca, já com suas noras. Deus fala com seu servo, fazendo uma aliança com ele, porque nele encontrou honra e retidão (Gn 6,9). Os animais também não são mais importantes que os homens, ou os únicos incorruptíveis; basta ver a fala do Senhor a Noé em Gn 6,13: “…tudo o que vive tem de terminar…a terra está cheia de crimes”. Mesmo assim, Deus salvará dois de cada espécie e os casais deverão entrar na arca “atrás” de Noé. Esse “atrás” indica uma hierarquia (por isso também o homem deve cuidar das criaturas – para que os ambientalistas não se ofendam).
O filme, é claro, usa-se de fontes extrabíblicas, como para falar dos Guardiões, anjos caídos que, por causa de sua luz e calor se fundem à rocha da terra, formando um espécie de gigantes de pedra com uma luz entre rachaduras. A referência talvez seja ao apócrifo Livro de Enoque, ou talvez seja uma referência aos gigantes de Gn 6,4. Ou ainda pode ser uma mistura dessa figura com os filhos de Deus de Gn 6,2, mas mexer com isso só deu uma áurea fantástica ao filme, extrapolando o próprio nível fantástico da Escritura, enrolando interpretações que são obscuras até para quem estuda bíblia. E só para terminar; a degradação moral da humanidade, no filme, consistia também em comer carne (antes do dilúvio) e não há, que eu saiba, nenhuma referência disso na bíblia, já que a liberação para comer carne – contanto que sem sangue – vem depois do dilúvio (Gn 9,4)…
2. O filme Noé é incompatível à teologia cristã católica sadia.
O filme não é de um teólogo, então ele não tem obrigação de fazer teologia. E bastaria dizer da liberdade de criação artística para eu calar minha boca e não dizer mais nada. No entanto, o filme toca questões preocupantes.

A arca é símbolo do “útero” divino capaz de gestar
o novo e parí-lo, mesmo de situações sem esperança.

O primeiro é certamente o da vontade de Deus. O pior inimigo de Noé no filme, não é o seu anti-herói, um sujeito barbudo que arrancaram sabe-se lá de que fonte para gerar emoção, contrapondo-o ao patriarca. Noé vai descobrindo que sua maior luta é contra a vontade de Deus, que é esmagadora. Sim, porque ele é julgado pelos seus familiares que o provocam dizendo que uma arca daquelas proporções poderia levar mais gente e também porque ele tem que ouvir a própria consciência perguntando-o ‘quem é bom? Quem é mal, para que uns se salvem e outros não?’ Mas, a vontade de Deus deve ser ouvida; a terra será repovoada após o dilúvio pelos animais, mas a humanidade não tem lugar lá. A família de Noé será o último rastro humano. Pode haver um Deus que não queira a humanidade? Que não acredite nela? Ora, se a história de Noé mostra alguma coisa, é justamente o contrário, mesmo sobre o paradoxo do dilúvio. Será a relação com Deus sempre uma relação concorrente, esmagadora; será ele o Absoluto que em contanto conosco, como dizia Merleau Ponty, poderá apenas nos destruir? Depois, esse negócio de saber a Vontade de Deus é muito perigoso; o discernimento é demorado… Mas há certamente regras de interpretação de uma possível vontade divina: a vida, em primeiro lugar, a paz, a realização crescente e abrangente… O Noé do filme é apenas mais um fundamentalista.
As provocações pseudo-filosóficas durante o filme, me lembraram Saramago (ele sim, filósofo). Primeiro, a questão de Noé: quem será bom, quem será mau e sua conclusão de que eles também são maus, enquanto sua mulher tergiversará dizendo que vê bondade em seus filhos (aliás, desculpem a digressão, trata-se de uma mulher sensata, que parece entender de ‘vontade divina’ mais do que Noé… E parece ser mais bondosa do o que Deus do filme). Devemos lembrar que o episódio do dilúvio, com seu gênero literário indica um sentido e não conta um fato, não descreve um evento. É, pois, um recurso narrativo de zerar a história, recomeçar uma geração (coisa expressa pelo número 40). A causa do dilúvio é a maldade do coração humano, não uma maldade ontológica, mas uma maldade praticada: a violência. O filme mostra violência em todos (exceto na mulher e em Jafé): quando se trata de defender os filhos (no caso de Sem); em Noé (fundamentalismo religioso), em Cam (por vingança e ressentimento). O filme acaba mostrando que todo homem é bom e mal (o que é certo), mas o relato bíblico não tem preocupação com essas nuances psicológicas que são tão ocidentais; ou se é reto ou não, na prática (ou sim, ou não!). Aliás, se as pessoas fossem retas, justas e amorosas, não haveria sentido na violência para defender a vida, muito menos na violência por vingança… 
 
A causa do dilúvio é a maldade do coração humano, não uma maldade ontológica, mas uma maldade praticada: a violência.
Segundo, a provocação da mulher de Sem e de outros a Noé, dizendo que a arca pode incluir mais pessoas, de que eles podem lançar as cordas para que mais gente se salve, já que há pessoas boas que estão morrendo injustamente… Esse traço do filme é estranhíssimo. Como se trata de um relato em que importa o sentido e não de uma descrição de um evento, insisto, o relato joga com exageros; toda a terra se perverteu, Deus só encontrou honra em Noé. O relato é simbólico e Noé é uma figura corporativa que representa a humanidade que se mantém, quer se manter fiel a Deus. Por isso a arca é símbolo de um microcosmo, onde se encontram pares de todas as criaturas e 4 homens, bem como 4 mulheres. Quatro é o número do cosmo, na bíblia. A arca, portanto, é um microcosmo que emerge em meio ao caótico; é o novo surgindo do bojo do velho. A arca é símbolo do “útero” divino capaz de gestar o novo e parí-lo, mesmo de situações sem esperança. Lembremo-nos também da Aliança. O Deus silencioso do filme parece muito com o Deus de nossas orações, calado enquanto esperamos uma resposta. Mas, acreditamos que na inefabilidade, Deus é eloquente. Sem concorrer conosco, sem esmagar-nos, Deus é o Absoluto que quer nos promover, nos elevar, nos dignificar…
Por fim, homem e Deus são parceiros, não inimigos. E onde há Deus, o Deus verdadeiro, há o seu desejo de ver o homem feliz e integrado e de sempre salvá-lo. A fidelidade à sua Aliança consiste, aliás, em resgatar o ser humano, sempre. Sua justiça não é castigo ou punição, como mostra o filme, mas justificação do homem. Então, a conclusão do filme, de que a Noé restou o direito de escolher salvar os seus ou não, parece indicar que Deus abriu mão, Ele mesmo, de fazer Sua escolha. Nós, entretanto, sabemos bem qual é a escolha divina: amar-nos efetivamente. O resto é ficção que, mesmo baseada na bíblia, não tem nada a ver com ela… Pois, um Deus sem humanidade, que desistiu da humanidade, não é mais o Criador, não é mais Deus…
Autor: Diácono Eduardo César

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