Pe. Egídio Balbinot
Introdução
O Concílio Vaticano II destacou a necessidade de uma participação plena, consciente, ativa, interna e externa e frutuosa do povo na liturgia.[1] No entanto, passados 40 anos da promulgação da Sacrosanctum Concilium, percebemos que, na prática, ainda não estamos conseguindo ‘viver a divina liturgia’, ou seja, não estamos conseguindo fazer dela um momento privilegiado de encontro com Deus que se atualiza no mistério da morte e ressurreição de Jesus. A liturgia, gesto gratuito de memória, está sendo muitas vezes reduzida a um amontoado de ritos e dinâmicas com preocupações pedagógicas. Busca-se água em tantas fontes exteriores e se esquece a fonte primeira da nossa liturgia: Jesus e seu mistério pascal.
De modo geral na maioria das celebrações litúrgicas, percebemos que a forma de participar, rezar, cantar e fazer determinadas ações rituais são realizadas de uma forma técnica e funcional com pouco envolvimento afetivo, espiritual e emocional. Corremos assim o risco de honrar Deus com os lábios com o coração distante dele (cf. Mt 15, 8).
Outras vezes, os agentes de pastoral preocupados em favorecer uma interpretação conscientizadora de determinados eventos históricos privilegiam na celebração, o discurso racional e de denúncia social. “Se por um lado determinado discurso ajuda a enraizar a fé na existência, purificando-a de interpretações alienantes, pode ao mesmo tempo sufocá-la. O discurso racional, da eficácia, pode reduzir de tal forma a ação divina nos gestos humanos que torna difícil descobrir a transparência da segunda na primeira. Por isso, o desafio é manter na celebração o olhar da fé que é capaz de reconhecer a carinhosa presença de Deus na vida. Se uma celebração não cria espaço para a oração gratuita, que se expressa na confissão dos pecados, nas preces, na oração de confiança, no louvor, é sinal de que algo não está bem”.[2]
Em vista disto, a seguir, pretendemos ainda que de modo sucinto, expor o que entendemos por liturgia orante e algumas condições para que ela aconteça.
1. Liturgia do coração
A liturgia orante é a ‘liturgia do coração”, ou seja, aquela que brota de dentro de nós e se expressa de modo afetivo e efetivo através de gestos, palavras e ações rituais envolvendo todos os sentidos do nosso corpo, propiciando assim uma participação plena, ativa, consciente e frutuosa.
Jean Corbon, referindo-se à oração pessoal diz que “é a partir da oração do coração que a liturgia passa a ser vida, limiar pessoal a transpor, onde tudo se decide, apelo primeiro ao qual é custoso responder (...) Somente no coração é que somos e nos tornamos nós mesmos. O coração é o lugar do autêntico encontro consigo mesmo, com os outros, mas especialmente com o Deus vivo”.[3]
Ione Buyst, entende ‘liturgia de coração’ como uma liturgia espiritual onde se busca o equilíbrio entre a objetividade do mistério celebrado e a subjetividade da participação e da experiência litúrgica; entre a dimensão afetiva e intelectiva; entre afetividade e razão; entre fervor e intuição.[4]
2. A liturgia é que serve
A liturgia orante é uma liturgia afetuosa. É o oposto do ritualismo, onde o que impera é a rotina e a frieza calculista dos ritos. A liturgia superficial ou devocionista não engaja, não transforma porque a pessoa não se sente envolvida. A liturgia orante leva ao compromisso e ao engajamento porque quando temos uma experiência concreta de Deus queremos partilha-la com outros.
O objetivo da liturgia é o encontro vivo com o mistério de Deus manifestado em Jesus Cristo. Para que este encontro seja ‘em espírito e em verdade’ (cf. Jo 4, 23), é preciso entrar no jogo simbólico-ritual da liturgia e não fazer a liturgia entrar no nosso jogo. Por isso não podemos criar a liturgia em vista de um tema.
“A criatividade em liturgia é como na música, uma variação sobre um tema imposto: o tema me é dado, não parte de mim mesmo. A liturgia é uma arquitetura inspirada na Bíblia e na Tradição, e assumida pela Igreja como Esposa de Cristo. É preciso considerá-la como um instrumento de serviço e não de modificações. A liturgia é que serve. Não somos nós que nos servimos. Entramos nela nos dirigindo a Deus para acolhê-lo. A celebração é feita essencialmente ouvindo, acolhendo e obedecendo. Ela não é uma palavra humana, mas uma resposta humana à palavra de Deus”.[5]
A liturgia orante acontece quando eu me ‘entrego’ ao jogo ritual da celebração e ao mesmo tempo em que ‘entro’ com minhas experiências e vivências pessoais, também me deixo ‘conduzir’ entendendo que tudo o que se diz ou se faz tem relação comigo. A liturgia é, antes de tudo, ato de Cristo. Ele é o ator principal. Na assembléia litúrgica eu não sou um espectador. Sou um hóspede convidado a me servir e a vivenciar o mistério através da minha participação ativa e consciente.
3. Liturgia: glorificação a Deus e serviço aos irmãos
A liturgia orante procurará sempre levar em conta dupla vertente: glorificação ao Pai e caridade com os irmãos. Neste sentido a Conferência de Santo Domingo propõe que “a liturgia seja mais viva e capaz de introduzir os fiéis no mistério, integrando a vida das pessoas numa profunda e respeitosa experiência do insondável mistério divino de riqueza inefável”.[6]
Para que isso aconteça é fundamental que a assembléia litúrgica tome consciência da presença viva de Deus nos fatos, nos acontecimentos, nas organizações e lutas que estão acontecendo no ‘hoje’ de nossa história. O louvor orante, a súplica e o compromisso de transformação nascem a partir do reconhecimento de Deus no meio de nós e são uma resposta ao seu apelo.
O fundamental é viver a liturgia e não explicá-la; é deixar-se conduzir como hóspede saboreando como o coração e com a alma o ágape que o Mestre nos oferece. A linguagem da liturgia vai além das palavras e dos ritos e por isso “entrar na liturgia é fazer uma experiência com a própria personalidade, com a própria inteligência e o próprio coração, com a própria imaginação e a própria memória, com o próprio sentido estético e os próprios sentidos corpóreos: a visão, a audição, o olfato, o tato e o gosto”.[7]
4. As condições para uma liturgia orante
Apontaremos a seguir algumas condições básicas que Ione Buyst considera importantes que a liturgia seja verdadeiramente orante: [8]
a) Viver profundamente a liturgia como acontecimento espiritual e pascal. “A experiência litúrgica é uma experiência pascalizante do Cristo Ressuscitado no Espírito, pela qual os participantes da ação litúrgica se deixam atingir e transformar gradativamente”.[9] Assim cada celebração é um novo impulso em vista da transformação da realidade injusta que vivemos. Esta atitude pascal deve perpassar toda a celebração dando assim um novo sentido aos ritos, gestos, palavras e cantos fazendo-nos passar sacramentalmente da morte para a vida, da escravidão para a liberdade.
b) Entregar-se à comunicação afetiva e amorosa com Deus e com os irmãos e irmãs. “A experiência litúrgica é uma experiência afetiva, à medida que, ao celebrar, sinto que estou relacionado com aquilo que é celebrado, com as realidades evocadas pelas leituras, pelos cantos, pelos símbolos, com a realidade que me cerca, com os outros, com o fundo de mim mesmo e com o fundo de toda realidade”.[10]
c) Aprender a nos tornar mistagogos, capazes de iniciar os outros participantes no processo de transformação pascal. Fazemos isso sempre na unidade do Espírito Santo, o principal mistagogo de nossas celebrações.
d) Para que tudo isso aconteça, é preciso unir em cada momento da celebração o gesto corporal, o sentido teológico-litúrgico e a atitude espiritual correspondente. Exemplificando: Quando fazemos a saudação à assembléia através das palavras “O Senhor esteja convosco” estamos expressando, confirmando e atualizando com palavras a verdade e o sentido da presença do Ressuscitado no meio do seu povo. Tanto esta proclamação do presidente, como também a resposta da assembléia deve também vir acompanhada de uma atitude espiritual, atitude de fé, de alegria e júbilo. Não há como ficar triste ou indiferente diante do anúncio da presença do Ressuscitado conosco. Naturalmente o gesto e a postura corporal e a comunicação devem corresponder e expressar de forma plena este anúncio. Dizer esta saudação só com os lábios, sem alma e sem vibração, olhando para o Missal e esquecendo o povo, torna inautêntico este momento da celebração.
O mesmo ocorre com os demais ritos e ações da celebração. Podemos ler a Bíblia como um livro qualquer e podemos lê-la no espírito como palavra de Deus. Podemos dançar com corpo apenas nos movimentando ou nos exibindo ou podemos dançar exprimindo a alegria do Espírito que habita em nós. O importante é que se vivencie corporal e espiritualmente, cada um dos gestos dentro de um determinado sentido teológico. Cabe a cada um de nós vivenciar espiritualmente os gestos deixando que o Espírito nos transforme.
É fundamental, portanto que haja uma atitude espiritual em tudo o que dizemos, falamos e expressamos na liturgia. “Essa atitude espiritual profunda, esta atenção amorosa àquele que se faz presente entre nós por meio de inúmeros sinais, faz da liturgia a fonte e a raiz de toda espiritualidade cristã. As atitudes e os gestos corporais na liturgia, feitas no Espírito, vão nos moldando aos poucos à imagem de Jesus Cristo, vão imprimindo em nós a atitude de misericórdia; atitude de serviço desinteressado; atitude de recuperação da vida de um irmão ameaçado de morte, mesmo arriscando para isso a própria vida; atitude de confiança, no sofrimento, nas dificuldades, na doença; atitude de firmeza diante dos poderosos; atitude de persistência e perseverança nas perseguições e no martírio; atitude de amor ao Pai e aos irmãos”.[11]
Concluindo...
A liturgia só será autêntica e transformadora se ela propiciar um encontro verdadeiro com o mistério de Jesus que se prolonga na vida dos irmãos e irmãs que participam da assembléia. Este encontro não pode ser ‘forçado’. Ele acontece plenamente na liberdade e na gratuidade. Isso não significa que devamos suprimir ou alterar os ritos litúrgicos. Ao contrário, a verdadeira liturgia acontece quando vivenciamos profundamente os ritos. De outro lado, não há oração litúrgica quando ‘despachamos’ certos ritos de forma mecânica e apressada.
A liturgia orante acontece quando somos capazes de ir além do ritualismo, do racionalismo e do verbalismo e assumimos o sentido pleno da ritualidade, que se realiza na unidade entre a palavra que pronunciamos, o gesto corporal que assumimos e a atitude espiritual com que a expressamos.
[1] Cf. SC 11; 14; 19; 110. A SC diz ainda que a liturgia é participação em ato (SC 26), deve se realizar na assembléia (SC 121) e deve ser organizada e sinfônica ( SC 28-29).
[2] Afonso MURAD & Marcelo GUIMARÃES, O amadurecimento litúrgico das CEBs e os sinais de uma nova espiritualidade. In: REB 208 (52), 1992, p. 830.
[3] Jean CORBON, Liturgia de fonte, p. 157.
[4] Cf. Ione BUYST, Liturgia de coração, p.12.
[5] Godfried DANNEELS, A obra de um Outro, in: 30 dias, nº 1, jan. de 1996, p. 48.
[6] CELAM, Nova Evangelização, promoção humana e cultura cristã: conclusões da IV Conferência do Episcopado Latino-Americano (Santo Domingo), nº 152 e 156.
[7] Godfried DANNEELS, A obra de um Outro, in: 30 dias, nº 1, jan. de 1996, p. 49.
[8] Cf. Ione BUYST, O lugar das emoções e sentimentos na liturgia. Apontamentos para o encontro da ASLI, jan. 1997, p. 5; Idem, Liturgia de coração, p. 55; Idem, Liturgia cristã. In: Tereza CALVALCANTI et alii, Curso de Verão Ano IV, p. 56.
[9] Ione BUYST, Pesquisa em liturgia: relato e análise de uma experiência, p. 37.
[10] Ibidem, p. 27.
[11] Ione BUYST & Ernesto CARDOSO, Liturgia cristã. In: Tereza CALVALCANTI et alii, Curso de Verão Ano IV, p. 56.
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