quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Dom Peppi e a "Virgem Feia"

A Virgem Feia era uma imagem muito antiga, de traços rudes, sem valor artístico. O novo pároco insistia em removê-la do altar-mor, mas os fiéis teimavam em conservá-la...
Mariana Morazzani Arráiz
Sim, eu também fiquei muito contrariada quando soube do título sob o qual se invocava aquela pobre imagem: Virgem Feia! Parecia mais uma imprecação saída da boca de um ímpio, do que um nome familiar dado pelos devotos. Mas, é melhor contar toda a história, sem nada omitir de importante, antes que surjam juízos precipitados.

Tudo começou há mais de 40 anos...

Quando Dom Beppi foi enviado por seu bispo para aquela cidadezinha perdida no meio das montanhas, tinha a resolução de tudo fazer pela salvação de seu novo rebanho. Era uma tarefa árdua, mas o incansável sacerdote a ela se lançou com seu zelo característico. Primeiro, venceu a natural desconfiança daquelas duras cabeças provincianas. Depois, regularizou a situação dos que haviam deixado de receber os sacramentos, fez as pazes com quem andava brigado com o altar, trouxe as saltitantes (e inconstantes) crianças à catequese.Enfim, atraiu para o Bom Pastor todas as ovelhas que pôde, suprindo pela oração o que os braços não alcançavam.

Mas isso não foi tudo. Nosso pároco tinha um olho posto nas almas e o outro na casa de Deus. Com o passar das semanas, ele foi anotando tudo que andava mal e tinha de ser consertado ou trocado naquela velha igreja. Telhado furado, vitrais quebrados, pintura descascada, piso velho, bancos frouxos... Quanta coisa!

Havia, porém, uma providência mais urgente no topo da lista de Dom Beppi: a de retirar da igreja a famosa imagem. Ele a encontrara logo no dia de sua chegada, justamente acima do altar principal, e nunca mais se esqueceu da impressão que teve à primeira vista. Sim, já tinha ouvido falar de seu nome, que lhe causara tanta contrariedade: Virgem Feia!... Mas só quando a viu pôde constatar quanto sua fama estava aquém da realidade.Jesus, como era feia!

Era uma estátua de algum material semelhante à argila cozida, de grande tamanho - mais de um metro e meio de altura - e muito pesada. Tudo nela parecia desproporcionado, e suas feições não podiam ser mais desagradáveis. Tinha dois olhos grandes e vidrados, e a boca não passava de um risco que cortava abruptamente um rosto artificial muito redondo.
Como ocorrera a alguém figurar dessa maneira a Mãe de Deus?

Depois de muito observá-la, o contrariado Dom Beppi chegou à conclusão de que o artista não a moldara assim por ignorância, mas empregara seu talento em criar uma figura propositadamente grotesca. Isso só aumentou seu aborrecimento, e ele decidiu retirá-la o quanto antes da igreja.

Contudo, esbarrou outra vez nas cabeças duras dos montanheses. O primeiro com quem ele falou sobre o assunto reagiu de forma categórica:

- Como?! Tirar a Virgem Feia da igreja? De jeito nenhum! Ela é antiga. Veja, aqui na base tem a data, é quase uma imagem medieval!

- Bem... sendo assim tão antiga, melhor será transferi-la para algum museu - propôs o pároco.

Esse argumento agravou ainda mais a situação. Com espanto, Dom Beppi descobriu como a imagem era apreciada por seus paroquianos.

- Ela já estava aqui quando fui batizado - disse um bigodudo integrante do coro paroquial.

- Eu fiz meu casamento diante dela!... - alegou uma velha senhora.

E por fim, uma das matronas da reza do terço deu o golpe de misericórdia:

- É essa a imagem que sai todo o ano na procissão. Não tem outra, e ponto final.

Descontente, Dom Beppi tentou contornar o problema. Planejou adquirir uma imagem bonita para colocar no altar principal, e pôr a Virgem Feia nalgum canto secundário da igreja ou, melhor ainda, escondê-la na sacristia. Quando, porém, os doadores da paróquia farejaram seu intento, todos os bolsos amigos, sempre generosos, se fecharam imediatamente. Aturdido, ele se perguntava como podia aquela gente gostar tanto de uma imagem tão feia.

Passaram-se alguns anos. A cidadezinha cresceu um tanto. O zeloso pároco afervorava seu rebanho e, ao mesmo tempo, restaurava a igreja sob seus cuidados. Batendo em todas as portas, levantou fundos como pôde, e agora o povo via com orgulho o belo templo que resplandecia sobre a colina: telhados novos, vitrais coruscantes, o artístico altar de mármore e uma alta torre de onde o grande sino de bronze anunciava as Missas. Mas nosso bom padre não estava contente. Quanto mais aumentava a beleza da igreja, mais se ressaltava a feiúra da imagem sobre o altar.

Dom Beppi sabia que aquela região sofrera inúmeras guerras e invasões nos séculos anteriores. Muitas casas tinham sido saqueadas ou incendiadas, e não faltaram mãos ímpias a profanar as igrejas. Cálices e outros objetos preciosos do altar haviam sido roubados então. A própria igreja a seu cargo já fora vítima desses saques profanos. E ele, num maligno pensamento, se perguntava por que os ladrões não haviam levado embora também a Virgem Feia. Terlhe- iam prestado um bom serviço!... Mas, claro, sendo tão feia, ninguém jamais a teria cobiçado. Se nem os ladrões a queriam, como conseguiria ver-se livre dela?

De tempos em tempos Dom Beppi visitava a cidade onde ficava o seminário no qual fizera os seus estudos. Lá morava ainda o velho padre que fora seu formador. Já quase centenário e praticamente cego, o virtuoso ancião tinha fama de santidade, e por isso era procurado por outros sacerdotes - e até por bispos, segundo constava - que lá iam confessar-se e pedir orientação para resolver intrincados problemas relativos ao pastoreio das almas.

Dom Beppi expôs-lhe com todos os detalhes a questão da Virgem Feia e, no final da conversa, perguntou:VIRGEM FEIA_I.jpg

- Como posso desfazer-me dela?

- Ela é mesmo assim tão feia?

- Sim! E muito!

- Mas o povo reza diante dela? Dom Beppi titubeou:

- Sim... sim... muita gente reza diante dela.

- Então - disse o velho sacerdote - se o povo lhe tem devoção, apesar de ela ser muito feia, alguma coisa deve haver nessa imagem. Não podemos decidir com base só naquilo que nossos olhos vêem. Antes de tudo, reze, pedindo ao Espírito Santo para o iluminar. E não se esqueça, meu filho, desta verdade: muitas vezes o Espírito Santo fala pela boca dos mais simples...

Dom Beppi partiu de volta para sua paróquia impressionado pelas palavras de seu antigo mestre. Sim, pensou, preciso ter vistas mais sobrenaturais! No entanto, ao entrar em sua igreja, a visão da desfigurada imagem lhe esmoreceu o bom propósito recém-feito. Nos dias de viagem ele havia conseguido esquecer-se um pouco daquela triste figura. Mas agora, ao reencontrá-la, assustou-se de novo.

Dom Beppi ficou estático diante dela, fitando-a durante uns quinze minutos. Depois saiu com passo rápido e firme. Acabava de surgir-lhe na mente uma boa idéia. Ele não a revelou a ninguém, mas sua decisão já estava tomada.

(Revista Arautos do Evangelho, Fev/2007, n. 62, p. 46-47)

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